Breve Ensaio Sobre Como Dançam as Sombras

Como viajam no espaço-tempo as luzes projetadas pelas ideias? E, ao sabermos das luzes, compreenderíamos como se desenham suas sombras?

Colagem da série “Ano-Luz”. 21 x 29,7cm.

I. Luzes dançam no espaço-tempo.

Ideias do passado lançam suas luzes sobre questões do presente. É o que parece acontecer na relação entre um texto escrito há 2.400 anos e o pensamento físico-teórico contemporâneo. Entre a alegoria da caverna, de Platão, e o princípio holográfico, a teoria de que o universo que habitamos seja um holograma, amplamente debatida e reforçada por pesquisas como as dos físicos Leonard Susskind e Juan Maldacena.

Tanto a teoria quanto a alegoria tratam da ideia de projeção. Mais precisamente, da percepção da realidade como sendo o resultado de uma projeção.

Na alegoria de Platão, é a projeção das sombras na parede da caverna que modela a realidade dos cativos. Para os físicos, o holograma, que pode ser entendido como uma projeção distribuída em várias dimensões, explicaria como toda a informação que compõe nosso universo e suas fronteiras parece se organizar diante de nós.

II. Sombras dançam no espaço-tempo.

Penso na Serra da Capivara, em Altamira, Chauvet e Lascaux. Penso que as paredes internas da caixa craniana têm um tanto de caverna. E que a luz viaja pelo vazio em raios invisíveis. E que se essa luz puder alcançar uma parede recôndita e morta, o invisível projetará o mundo.

Penso em todos os desenhos que se desmancharam no tempo, em erodidas Capivaras e Altamiras. E imagino que, sob certa luz, suas sombras ainda dançam.

Comprovada, a teoria do universo como um holograma não nos fará pensar apenas que somos iludidos por um entorno feito todo de projeções intrincadas ou que estamos presos à posição de observadores dessas projeções, como na imagem elaborada por Platão. Ao compreendermos o universo como um holograma, saberíamos que somos também, assim como tudo o mais ao redor, sombras.

Cinco Retratos

“Cinco Retratos” é um conto breve, para experimentar com a densidade de corpos e espaços.

Link para o texto no Medium clicando aqui.

Os quatro convidados analisavam a estranha passagem cravada no meio da parede da cozinha enquanto o anfitrião contava sobre seu achado. Era uma fenda formada entre duas placas irregulares de concreto cobertas por manchas de umidade. Estreita, mas alta como um homem, com dois palmos de largura na parte superior e um palmo na parte mais próxima ao chão. Ao não refletir ou emitir luz, parecia não ter fim. Dela fluía uma corrente de ar constante que preenchia o ambiente com um ranço mineral.

Em volta da abertura, estavam visíveis restos da argamassa que sustentava o revestimento de azulejos. Era uma cerâmica caramelo, recorrente em casas daquela época. Não fosse pela existência da fenda, seria uma cozinha comum. Uma mesa ocupada por pratos, copos, aperitivos e bebidas aguardava o interesse dos convidados enquanto falava o anfitrião.

– Ainda estava desempacotando as caixas da mudança quando comecei a escutar os azulejos assobiando. Seguindo o som, encontrei um pedaço de rejunte faltando. Um pequeno furo por onde soprava um ar com cheiro de cimento molhado. Ao tocar a parede, notei que os azulejos estavam todos descolando, por um fio. Primeiro imaginei que fosse um problema de infiltração, mas, ao arrancar as peças mais soltas, achei a passagem. Desde então costumo entrar aí com almofadas e livros, café, meus estudos do doutorado… Vocês sabem da minha tendência à reclusão. Depois que descobri esse espaço, tenho passado mais tempo aí dentro do que habitando o resto da casa.

– Você não existe! Mas o que tem aí dentro, exatamente? Algum tipo de cofre, uma despensa?

Embora a mudança tivesse sido feita há vários meses, aquela era a primeira vez que ele recebia convidados. Os quatro eram seus amigos mais íntimos. A ideia de reunir um grupo maior era impensável. Ainda que tivesse alugado uma casa espaçosa para alguém que vive só, ele não era do tipo que aproveitaria as duas salas, o quintal e a cozinha ampla para fazer festas. Curiosamente, o que fazia com que ele se sentisse em casa naquele imóvel era ter descoberto um refúgio na parede de azulejos da cozinha.

– Não há móvel ou objeto algum aí dentro, nenhuma decoração. Não tem entrada de luz além dessa abertura para a cozinha. Há essa corrente de ar que não sei de onde vem. O espaço é grande demais para uma despensa. Talvez tenha sido uma moradia anexa, um conjugado que, de alguma maneira, acabou oculto entre a parede da cozinha e as velhas construções vizinhas. Vai saber. Bom, imagino que vocês queiram que eu vá na frente.

Os quatro assistiram atentos aos movimentos de ajuste do corpo à tarefa de atravessar o espaço estreito. O processo parecia exigir prática e algum contorcionismo. Queixo apontado ao ombro, braços um pouco erguidos, com as palmas das mãos próximas à cabeça, tocando a parede interna da abertura. Os calcanhares se encontravam a cada passada curta. Sem demorar, já não se distinguia a figura da sombra. Pouco depois, silenciava também o som do corpo e das roupas roçando as paredes estreitas daquele espaço sem luz.

Sem que nada fosse dito, repetiram a coreografia fenda adentro, um a um.

• • •

Ao centro da câmara, a primeira figura distendia seu corpo horizontalmente, aumentando sua largura algumas vezes, em um arco que se aproximava dos quatro outros corpos sem tocá-los.

A segunda figura pulsava intensamente, repetindo-se no espaço, multiplicando-se três vezes, até alcançar e atravessar a terceira figura que, por reflexo, expandiu-se em todas as direções e então contraiu-se lentamente em um movimento que circundava os três volumes idênticos. A interação entre os corpos estabilizou-se quando a segunda figura voltou ao estado aglutinado.

A quarta e a quinta figuras comprimiam seus corpos contra as superfícies do lugar, alternando movimentos de fusão e de separação. Ora somavam seus volumes em uma única massa, ora desconectavam.

Em um movimento dilatado no espaço, as massas conjuntas da quarta e da quinta figuras tocaram uma estreita passagem por onde corria uma perturbação fluida e constante.

O contato com a origem da perturbação atraiu a primeira figura que, posicionando-se ao lado daquele pequeno canal, alterou seu corpo para uma forma reduzida, cilíndrica e longilínea e resvalou passagem adentro.

O processo foi repetido em sequência por cada um dos corpos.

• • •

Cinco oscilações em um não-espaço. Dissiparão quando houver um quando.


Sobre "Como Desenhar Cabeças"

Como Desenhar Cabeças é o título desta série de textos impressos sobre páginas originais de um livro de exercícios de desenho utilizando uma técnica de serigrafia com carvão. Tratam-se de nove proposições, escritas e impressas entre maio e agosto de 2018.

O livro cujo título é o mesmo da série, Como Desenhar Cabeças, assinado por Rachel Mandel, foi o primeiro livro que comprei, aos 10 ou 11 anos de idade, em um sebo vizinho à minha casa. A publicação apresenta uma série de exercícios de desenho de construção de rostos e cabeças, com uma abordagem didática bastante conservadora e tradicional, caracterizada pelo uso de etapas de construção da figura: partindo de uma estrutura geométrica simplificada, esquemática, e avançando na adição de volumes e detalhes. As páginas selecionadas para a sobreimpressão das proposições foram parcialmente apagadas. Em sua maioria, os rostos foram removidos, mantendo os traços de contorno das figuras. 

Como Desenhar Cabeças é o segundo trabalho que deriva da pesquisa artística acerca das possibilidades de abordagem do retrato, iniciada em 2017, cuja primeira materialização é a série de desenhos Solo.

— Gabriel Duran Fraga, São Paulo, agosto de 2018.

Como Desenhar Cabeças, MAB Centro, São Paulo, Brasil. 2018.

Como Desenhar Cabeças, MAB Centro, São Paulo, Brasil. 2018.

Solo (EN)

Solo is a series of charcoal drawings on cotton paper which started at the artist-in-residence program at the Arte Serrinha Festival in June 2017 and were later expanded within the context of the collective studio in the MFA program at FAAP. The series is made of 60 images and always presented in a polyptych.

The series stemmed from an investigation of portraiture in absence of any previous model or reference. The drawings were arranged at random and through involuntary visual memory action, with no preliminary draft or project.   

Random streaks were made by a few controlled gestures utilizing raw pieces of partially burnt wood. The result from these gestures is reassured or reconfigured by new smudges made with charcoal and rags rubbed against the paper surface, or directly generated by hand. After that, the image ceases gesture—never the contrary, even though I explicitly know that I have an “incomplete” shape in front of me. There is something in the process of making these drawings that functions as the opposite of a mask: It retreats from itself in order to be revealed. Therefore, in a way, the drawing decides on its own how much it gives or takes away.   

Some of these images were quickly concluded: they are revealed in a few gestures and are thoroughly incorporeal and evanescent. Others required a certain amount of markings, as if in an unhurried excavation where charcoal digs into the white surface of paper.

In all cases, the streaks and traces do not end up consolidating an identity — they do not define solid faces, bones, and well contained muscles in firm skin outlined by the projection of lighting and shades. In Solo, the images are opened.

The elusiveness of these images—their openness—summon a kind of involuntary mental game that especially consists of closing—or defining a face—with minimal identity attributed to the streaks and smudges.  

— Gabriel Duran Fraga, São Paulo, March 2019.

Gabriel Duran Fraga, Solo, 2017/2018

Gabriel Duran Fraga, Solo, 2017/2018

Gabriel Duran Fraga, Solo, 2017/2018

Gabriel Duran Fraga, Solo, 2017/2018

Solo (PT)

Solo é uma série de desenhos realizados com carvão sobre papel algodão, iniciada durante o período de residência artística do festival Arte Serrinha, em junho de 2017, e, posteriormente, ampliada no contexto do ateliê coletivo do Programa de Formação Continuada, Pós-graduação em Artes Visuais, na FAAP. A série conta com 60 imagens, sempre apresentadas como um políptico.

Os desenhos advêm da investigação do retrato  na ausência de qualquer modelo ou referência prévios. Os desenhos configuram-se a partir do acaso e da ação involuntária da memória visual, sem nenhum tipo de esboço ou projeto preliminares.

Manchas aleatórias são criadas por gestos pouco controlados, utilizando pedaços brutos de madeira parcialmente queimada. O resultado dos primeiros gestos é reafirmado ou reconfigurado por novas manchas construídas com carvão e trapos friccionados sobre a superfície do papel ou produzidas pela ação direta da mão. Então, a imagem cessa o gesto.  Nunca o contrário. Mesmo estando explícito que tenho diante de mim uma figura “incompleta”. Há algo no processo de desenho destas imagens que opera como o oposto de uma máscara: retira-se para revelar. E, de alguma maneira, o próprio desenho determina quanto se tira e quanto se põe.

Algumas das imagens são concluídas rapidamente: revelam-se em poucos gestos e resultam bastante incorpóreas, evanescentes. Outras, exigem um acúmulo de registros, como uma lenta escavação onde o carvão aprofunda a superfície branca do papel.

Em todos os casos, as manchas e os traços não terminam de consolidar uma identidade—não definem rostos sólidos, de ossos e músculos bem contidos por pele firme e delineados pela projeção de luzes e sombras. Em Solo, as imagens são abertas.

A indefinição destas imagens—sua abertura—convida a uma espécie de jogo mental involuntário que consiste, justamente, em “fechar”, definir uma face, com a atribuição de uma identidade mínima às manchas.

— Gabriel Duran Fraga, São Paulo, março de 2019.

Imagem de "Solo", 2017, políptico exposto na 49ª Anual de Arte FAAP.